Consciência, Mente e Ego
No nosso último encontro falamos sobre a mente e como, através de um exercício simples de atenção e foco, é possível perceber que existe um observador ( द्रष्टृ drashtri – aquele que vê) , aparentemente distinto da mente em si, e que é capaz de acompanhar os movimentos da mente, pelo menos por algum tempo, e também perceber que, por vezes nossa mente age de forma autônoma à nossa vontade, divagando em pensamentos não planejados, até que nos damos conta disso e reorientamos para focar no que desejamos. Esse exercício simples, nos leva a um questionamento importantíssimo: somos mais do que apenas uma mente e seus pensamentos aleatórios?!
De fato, segundo diversas tradições, onde se inclui a Filosofia do Yoga Clássico que contém os Yoga Sutras de Pátañjali, sim, somos muito mais que nossos pensamentos. E talvez essa constatação talvez seja a principal razão de existir do Yoga. Veremos neste texto, hoje, como é definida a Psique humana de acordo com o Yoga Clássico.
Cada tradição religiosa adota um nome para referir-se à porção Divina que habita em nós: “Voz da Consciência”, “Luz Pura Interior”, “Luz Interior”, “Sol interior”, “Centelha Divina”, “Eu Maior”, outros nomes… Essa diferença de nomenclaturas por vezes desvia o objetivo, gera confusão e separação, assim melhor não nos atermos à nomenclatura, mas sim ao conteúdo e o conceito. Adotaremos “Luz Interior”, peço que ajuste conforme sua preferência para melhor entendimento, essa nossa divindade interna, eterna, não falível e que nos torna parte do Tudo, da Existência.
citta – a nossa Consciência pode ser definida como um campo Coração-Mente por onde nossa “Luz Interior” brilha e se manifesta. De uma forma didática, ciita ou consciência contém: i) nossa mente exterior; ii) nossa mente interior; iii) nosso ego; e vi) nossa memória. Entender como esse campo complexo opera, é fundamental para compreender como o Yoga funciona. Se formos capazes de entender o mundo através desta perspectiva, poderemos mudar radicalmente a forma como pensamos e agimos aqui, em direção à evolução e transcendência do ser.
O Yoga Clássico afirma um dualismo entre o Espírito ( पुरुष purusha) e a matéria ( (प्रकृति prakriti). A realidade material (prakriti) é tudo que já mudou, pode mudar e é sujeito a causa e efeito. Já Purusha é o princípio universal imutável, não causado e presente em tudo. Inclui o prakriti que muda, e é a razão pela qual existe causa e efeito. De acordo com as várias escolas do hinduísmo, purusha é aquilo que conecta todas as coisas e seres. Dentro deste conceito dualista, quando olhamos do ponto de vista da consciência, existe separação clara entre o eu individual ( जीव jîva-âtman) e o Supremo Si Mesmo (परमात्मन् parama-âtman) e desta forma está sustentado nos Yoga Sutras de Pátañjali. Cabe ao Yogin, o adepto do Yoga, o discernimento ( विवेक Viveka) entre o eu individual e o Supremo Si Mesmo, o Eu Maior.
Conforme o Yoga Clássico, nossa Psique funciona mais ou menos da seguinte forma: entre a Realidade e o que a nossa consciência (citta) ordinária nos permite observar, existe um véu nebuloso (माया maya) que oferece uma visão distorcida da Verdade. As práticas de Yoga (em suas oito ramificações – ashtanga – que veremos oportunamente) permitem que esse véu pouco a pouco vá se dissipando, tornando-se cada vez mais cristalino e transparente, até que nossa consciência vai deixando de distorcer a realidade e se possa chegar à realização (समाधि samâdhi), quando a consciência está plenamente expandida até a Consciência Universal (Citta, com C maiúscula para diferenciar da nossa consciência ordinária individual).
*falaremos dos Gunas, estados da matéria, oportunamente
Como dissemos, citta é influenciada pela mente exterior (Manas) e pela mente interior (Buddhi). E Buddhi contém em si o Ego (Ahankar). Vamos detalhar cada um deles.
Manas: a mente exterior processa as percepções sensoriais, todos os estímulos dos sentidos (audição, visão, tato, olfato, paladar) . A partir destas percepções, impressões são gravadas na memória. Se a mente exterior tem visão distorcida da Realidade, assim ficará gravada na memória.
Buddhi: a mente interior, também conhecida como o intelecto. Esta é a parte da citta que toma decisões a partir da interpretação das informações que provem da memória. Buddhi é influenciado pela Luz Interior
Ahankar (Ego): Mente Individualizada – Entre Buddhi e Manas está Ahankar (o Ego). O Ego nos identifica como um indivíduo, separado fisicamente das demais pessoas. Esta individualização é necessária para a vida na matéria, para a sobrevivência em um corpo individualizado. E o ego para isso é essencial, porém fora de controle, ele pode causar muitos problemas, pois gosta de controle, poder, posse, agarrar-se às coisas: apego. Pode criar impressão falsa de separação e de diferença entre as pessoas. Para o Yoga, todos são iguais e parte do mesmo Todo. Por isso é importante ter práticas que permitam que o Ego ande sempre conjuntamente com Buddhi, para mantê-lo controlado. Não queremos que o Ego seja o Chefe, queremos que nossa Luz Interior seja a Chefe.
Memória: Tudo o que experimentamos com nosso sistema fica armazenado na memória – cada pequena coisa. Ainda assim algumas coisas impressionam mais que outras. E o que está na nossa memória afeta nossos pensamentos, palavras, ações. Por isso é tão importante experimentar coisas boas, não dar atenção a experiências que não seja para nos elevar espiritualmente. “Vigiai e Orai” tem este significado, para quem é cristão, compreenderá facilmente, pois foram palavras do Cristo.
Em Yoga queremos que o Ego esteja contido pela Mente Interior, por Buddhi, pois Buddhi aconselhado pela nossa Luz Interior indicará o caminho correto a Ahankar, o Ego, para que nossas ações (karma) estejam alinhadas com nosso Propósito (Dharma). Falaremos de Karma e Propósito numa próxima oportunidade. Para controlar o Ego, precisamos de algo que o Ego considere maior que ele. Precisamos de ईश्वर Iishvara (que pode significar: alma suprema, governante, senhor, rei, rainha ou marido). Isto cultiva humildade porque é algo que consideramos maior que nós mesmos para transferir os créditos das nossas ações sem querer apropriar-se das mesmas. Fazemos o que fazemos como oferenda Àquilo que respeitamos e sabemos ser maior e melhor que nós próprios.
Buddhi influenciada por nossa Luz interior nos deixa plenos (Mindfullness), amorosos, compassivos e atentos para evitar criar conflitos, falar/agir de forma agressiva para não criar ações contrárias ao Dharma. Yoga não é para mudar os outros. É para mudar você. Logo é um exercício de humildade. São Francisco de Assis, talvez não soubesse à época, não sabemos ao certo, mas foi um dos maiores yogis que já existiram. Um dos principais objetivos das práticas do Yoga está em limpar continuamente esse campo de consciência coração-mente. Essa Luz Interior está presente em cada célula do nosso corpo, mas está particularmente concentrada na região do coração, no chakra cardíaco, no centro do nosso corpo espiritual, centro do nosso corpo sutil, a morada do Prana (energia divina vital), centro da nossa força vital.
Assim, citta está entre nossa mente interior e nossa mente exterior, para nos permitir discernir entre a Realidade e nossas distorções da realidade impregnadas nas memórias do passado e nas preocupações sobre o futuro, a partir das nossas memórias.
Alguns aforismos relacionados a este tema em Pátañjali nos Yoga Sutras número IV:
चितेरप्रतिसंक्रमायास्तदाकारापत्तौ स्वबुद्धिसंवेदनम्॥२२॥ citer-aprati-saṁkramāyāḥ tad-ākāra-āpattau svabuddhi saṁ-vedanam ॥22॥ – Ao contrário da característica daquilo que é imutável nos seres humanos, o verdadeiro Eu é imutável e, portanto, pode alcançar pleno conhecimento e autoconhecimento. 22 ||
द्रष्टृदृश्योपरक्तं चित्तं सर्वार्थम्॥२३॥ draṣṭr̥-dr̥śy-opa-raktaṁ cittaṁ sarva-artham ॥23॥ – O objetivo real daquilo que é mutável nos seres humanos (citta) é ver de perto tanto o observador (drashtu) quanto o objeto observado. 23 ||
तदसंख्येयवासनाभिश्र्चित्रमपि परार्थं संहत्यकारित्वात्॥२४॥ tad-asaṅkhyeya vāsanābhiḥ citram-api parārtham saṁhatya-kāritvāt ॥24॥ – Essa mutabilidade humana (citta) tem inúmeros desejos de todas as descrições (vasana). Mas ele tem outro propósito – a saber, estabelecer uma conexão entre o mundo exterior e o Verdadeiro Eu. 24 ||
विशेषदर्शिन आत्मभावभावनाविनिवृत्तिः॥२५॥ viśeṣa-darśinaḥ ātmabhāva-bhāvanā-nivr̥ttiḥ ॥25॥ – Para quem experimentou essa visão única (darshana), o desejo (vritti) de auto-realização desaparece. 25 ||
Portanto, Yoga é uma jornada sobre quem somos e o que estamos fazendo aqui, buscando conectar nossa consciência com nosso Eu Verdadeiro, nossa Luz Interior.
Como estes aspectos da mente e da consciência interferem nas nossas vidas? Como você interage com as outras pessoas e com os outros seres? Como você lida com sua consciência, com seu interior? Através da compreensão e prática do Yoga, posso afirmar com depoimento pessoal, coisas que antes aborreciam, perderam a importância e são relativizados. Um desejo verdadeiro de mudar, de transformação pessoal, transformação verdadeira, estar aberto a aprender coisas novas, inclusive coisas que vão contra o que você pode ter pensado sua vida inteira… certezas relativas.
Focar atenção – quando nossa consciência começa a se acalmar, abrimos espaço para que nosso verdadeiro Eu possa se manifestar – o Nobre Silêncio praticado pelos zen budistas tem essa finalidade. Mauna, uma palavra de origem sânscrita significa silêncio, mas não apenas no sentido de não falar, mas de fazer jejum de palavras, de pensamentos, nos aproximando cada vez mais da nossa essência. Livrar-se dos rótulos, pré julgamentos, dogmas são pré-requisitos para a verdadeira imersão interior. Refinar o corpo, a respiração, a mente, para que finalmente possa acessar sua divindade interior – é um processo de construção, que exige vontade verdadeira e disciplina, um caminho incrível do denso ao sutil … Vamos juntos?!
Créditos desta seção:
i. “Introduction to Yoga Sutras” – Nicolai Bachman”
ii. “A Tradição do Yoga – História, Literatura, Filosofia e Prática” – Georg Feuerstein
iii. “The Mind” – Yogi Bhajan
iv. imagem: Cosmos vibration em Tumblr