Aparigraha
Olá!
Seguimos caminhando na nossa investigação sobre os Yamas, e hoje falaremos sobre um Yama muito especial, Aparigraha ou desapego.
Nos Yoga Sutras de Pátañjali. No aforismo II.39 diz-se:
अपरिग्रहस्थैर्ये जन्मकथन्तासम्बोधः
Aparigrahasthairye janmakathantāsambodhaḥ
“O (a) permanente desapego (não cobiça) do yogi o permite ter conhecimento sobre o objetivo da vida terrena”
aparigraha = não cobiça, não distração com presentes
sthairye = estabilidade
janma = nascimento; consequências do nascimento; encarnação; vida terrena
kathaṁtā = o como e por quê; objetivo
saṁbodhaḥ = entendimento, conhecimento
Simples e profundo. De uma forma bastante direta, a lógica de Aparigraha traduz-se em: Quando estamos focados em querer coisas, possuir coisas, ficamos tão amarrados a estas coisas, mentalmente ocupados em ter, manter, cuidar, controlar, com medo de perdê-las ou não consegui-las, que não existe qualquer espaço ou possibilidade em buddhi, nossa mente mais sútil, para acessarmos nossa Luz Interior da Consciência, que é nosso portal para que possamos refletir e entender sobre a vida Real, aquela que não termina aqui. Portanto esse aforismo é direto no sentido que: para você poder acessar as coisas que não morrem, precisa primeiro se desligar das coisas que morrem.
Dicionário On Line de Portugês – definição da palavra Apegar -> juntar, colar, segurar-se a, agarrar, afeiçoar-se
Apegar a coisas/pessoas/sentimentos, significa estar colado, junto, segurado, agarrado por coisas/pessoas/sentimentos – então, como ser livre de coisas que o fizeram, fazem ou farão você sofrer, se você, por desejo próprio, livre-arbítrio, está agarrado, acorrentado a estas coisas ou pessoas ou sentimentos?! “Todo mundo quer ir para o Céu, mas ninguém quer morrer”. Em Aparigraha, estamos falando de morrer para as coisas que morrem e viver para as coisas que não morrem.
Todo o yoga, todos os yamas, são um processo e não um estado permanente. Trata-se de um processo evolutivo. Talvez você não consiga de forma alguma se desapegar de algo hoje, porém com foco, atenção na ação e persistência, pouco a pouco, há evolução. E cada passo do processo evolutivo é uma conquista e uma oportunidade de desfrutar a conquista. “A felicidade está no caminho, não no destino” Alguém não se torna feliz, mas sim, vai ficando feliz. Num mundo imediatista, de resultados rápidos, estamos condicionados a pensar diferente. Daí tanto sofrimento.
O apego a pessoas, coisas, memórias, desejos tem uma conexão direta com o medo. O medo de perder, de desapegar, do objeto do apego. Para vencer o apego, você deve vencer o medo. “Medo leva a raiva… raiva leva ao ódio… ódio leva ao sofrimento.” “Treine-se para deixar ir tudo o que você tem mais medo de perder.” Essas frases do Mestre Yoda, famoso personagem da saga Starwars são profundas e espirituais, são o caminho do jedi (do yogi). E, como devem perceber, não estão no enredo ao acaso…Vejamos o que dizem algumas tradições acerca do apego e do medo:
“Não fui eu que ordenei a você? Seja forte e corajoso! Não se apavore nem desanime, pois o Senhor, o seu Deus, estará com você por onde você andar” [Josué 1:9]
“No amor não há medo; ao contrário o perfeito amor expulsa o medo, porque o medo supõe castigo. Aquele que tem medo não está aperfeiçoado no amor” [João 4:18]
O antídoto para o medo é o Amor. O medo está ligado ao apego. O Amor está ligado ao servir, ao fazer sem esperar nada em troca, sem amarras. Fazer como oferenda a Deus.
No Zen Budismo existe esta famosa história: “um mestre e seu discípulo estavam a caminho da aldeia vizinha quando chegaram a um rio caudaloso e viram na margem, uma bela moça tentando atravessá-lo. O mestre zen ofereceu-lhe ajuda e, erguendo-a nos braços, levou-a até a outra margem. E depois cada qual seguiu seu caminho. Mas o discípulo ficou bastante perturbado, pois o mestre sempre lhe ensinara que um monge nunca deve se aproximar de uma mulher, nunca deve tocar uma mulher. O discípulo pensou e repensou o assunto; por fim, ao voltarem para o templo, não conseguiu mais se conter e disse ao mestre: — Mestre, o senhor me ensina dia após dia a nunca tocar uma mulher e, apesar disso, o senhor pegou aquela bela moça nos braços e atravessou o rio com ela. — Tolo – respondeu o mestre – Eu deixei a moça na outra margem do rio. Você ainda a está carregando.”
“O desapego, como sabemos, não é uma rejeição, mas uma liberdade que prevalece quando deixamos de nos atar às causas do sofrimento. Em um estado de paz interior, com conhecimento lúcido de como funciona a nossa mente.” [Matthieu Ricard, monge budista, Nepal]
No Capítulo 2 do Tao Te Ching, Lao Tse, o Mestre do Tao, escreve:
“Portanto
O Homem Sagrado realiza a obra pela não-ação
E pratica o ensinamento através da não-palavra
Os dez mil seres fazem, mas não para se realizar
Iniciam a realização mas não a possuem
Concluem a obra sem se apegar
E justamente por realizarem sem apego
Não passam”
Lao Tse menciona o apego e o não-apego. Realizar o trabalho sim, mas realizá-lo dentro da não-ação, realizá-lo porque é importante, fundamental que seja realizado. Porém, sem qualquer apego ao resultado. O corpo espiritual, a Luz Interior da Consciência, que não tem fim, ao contrário, permanece em eterna mutação dentro da constância da Luz do Tao do universo. Esse sim, “não passa”, não termina nunca, continua sempre e alcança a infinitude da vida aliada à infinitude da consciência – esse é o Caminho da Iluminação e, fundamentalmente, o Caminho da Imortalidade
Aparigraha também é profundamente detalhado na Baghavad Gita, no Capítulo 2 – A Revelação da Verdade. Vejamos:
Baghavad Gita – Cap2 – Revelação da Verdade
II.37 – Ó bravo filho de Kunti, ou você morre na luta e vai viver outra vida nos mundos celestiais ou, se vencer, você vive para gozar nesta Terra. Por isso, lute com fé. II.38 – Lute apenas por lutar sem pensar em perda ou ganho, em alegria ou tristeza, em vitória ou em derrota, pois, agindo desse modo, você nunca pecará. II.39 – Até aqui Eu lhe falei do conhecimento obtido pelo estudo analítico da filosofia Sankhya. Ouça agora o que direi ó descendente de Bhárata, sobre o trabalho que é feito sem apego a resultados, que livra do cativeiro do trabalho mercenário. II.40 – Nesta via não há perda e nenhum esforço é em vão, e um pequeno avanço nela liberta do grande medo. … II.44 – Na mente dos apegados aos prazeres dos sentidos e à riqueza material e que por isso se iludem, não ocorre a decisão de prestar serviço a Deus ... II.47 – O direito que é devido é o de cumprir a missão e não o de reclamar o resultado da ação. Não considere a si mesmo o objetivo dos seus atos nem se prenda à inação. II.48 – Fixando a mente na yoga, abandonando o desejo de vitória ou de derrota, execute o seu trabalho sem apego ao resultado… II.50 A pessoa que se ocupa em servir com devoção encontra-se liberada de todas as reações. Por isso pratique yoga que é fazer tudo com arte. II.51 – Os que fazem seu trabalho com inteira devoção, sem apego a resultados, conseguem se libertar do nascimento e da morte atingindo a perfeição. …. II.55 – Quando um homem renuncia aos desejos dos sentidos engendrados pela mente, obtendo contentamento unicamente no Eu, diz-se então que alcançou a consciência divina. II.56 – Quem está sempre tranquilo apesar das três misérias; quem não se deixa exaltar quando há felicidade; quem está livre do apego; quem não tem ódio nem medo; merece o nome de Sábio. II.57 – Neste mundo transitório quem não se deixa afetar pelo bem ou pelo mal que poderão sobrevir, sem louvá-lo ou maldizê-lo, já se encontra situado na consciência divina. II.58 – Aquele que for capaz de retirar os sentidos de todos os seus objetos assim como a tartaruga recolhe os membros no casco, deve ser considerado um ser autorrealizado. II.59 – A alma corporificada consegue renunciar aos prazeres dos sentidos muito embora ela não perca o sentido do prazer. Porque, depois de provar o gozo transcendental, ela fixa a consciência.
O dinheiro tem sua importância, mas é apenas um meio e não um fim. A pessoa que se apega torna-se avarenta e escrava. Dinheiro é apenas mais uma forma de energia, e como tal é de sua natureza ir e vir e ir. Ele é necessário no mundo material para as trocas materiais, assim como o sal ou o ouro já foi em outras épocas. Se você retém dinheiro demasiadamente, você retém a energia na mesma proporção. Energia represada pode causar estragos, basta ver o rompimento de barragens e represas o que causam. Aí os desequilíbrios acontecem, No desequilíbrio, surgem as mazelas, surgem as doenças da sociedade e do indivíduo. Todo acumulo exagerado ou escassez exagerada é um desequilíbrio, um estado não natural das coisas. Existe sempre um ponto ótimo. As formigas armazenam nas estações quentes o alimento suficiente para as estações frias. Armazenar não é o problema. Armazenar além da necessidade justa é problema.
Mateus, 22 – 17:22
17- Dize-nos, pois, que te parece? É lícito pagar o tributo a César, ou não?
18 – Jesus, porém, conhecendo a sua malícia, disse: Por que me experimentais, hipócritas?
19 – Mostrai-me a moeda do tributo. E eles lhe apresentaram um dinheiro.
20 – E ele diz-lhes: De quem é esta efígie e esta inscrição?
21- Dizem-lhe eles: De César. Então ele lhes disse: Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.
22 – E eles, ouvindo isto, maravilharam-se, e, deixando-o, se retiraram.
O apego tem muitas facetas: vícios em geral: bebidas, dinheiro, cigarro, sexo, drogas, mas também apegos do cotidiano, à nossa beleza, às nossas aptidões ou às nossas posses, e assim nos sentirmos superiores aos outros, o que é a antítese do yoga (em yoga somos iguais, somos um). É igualmente fácil nos apegarmos à nossa feiura, à nossa falta de aptidões ou à nossa pobreza, e assim nos sentirmos inferiores aos outros. O apego às condições favoráveis leva à avidez e ao falso otimismo, enquanto que o apego às condições desfavoráveis leva ao ressentimento e ao pessimismo.
Quando as pessoas nos elogiam, e o elogio torna-se tão importante que enviesamos nosso entendimento sobre nós mesmos. Eles dizem: “Você é tão bonito(a), tão bonito(a), tão inteligente, etc…”, e isso vai à sua cabeça e você pensa que é bonito(a), inteligente, etc.. . Se dez pessoas repetem a mesma coisa, isso entra em sua mente e você perde toda a realidade sobre quem você realmente é e o que você é. Isso se chama “parigraha”, “pegar as coisas”. “Aparigraha” é o oposto, nada gruda em você, nada de ninguém, seja um elogio, seja uma ofensa pois você tem consciência exata do que é, nem mais, nem menos, a medida exata.
A maior parte das pessoas deixam de viver por estarem apegadas ao passado ou ao futuro, negligenciando o presente. Em Verdade, a única vida que se vive é a do Agora, onde de fato temos ação (karma yoga).
Assim, quando o sol brilhar, aproveite o sol, mas não pense no incômodo do calor, desejando a chuva. E quando a chuva cair, não pense no Sol, desfrute a chuva, sinta seu cheiro, seu toque, seu som. Tudo é maravilhoso quando se olha com os olhos de Deus, e não da nossa mente ordinária, catalogadora, julgadora, cruel. Todas as coisas nesta vida – deixe-as que venham e deixe-as que se vão: fluxo, pulso, sem retenção, sem acúmulo, sem escassez. Como dizia Chico Xavier: “Isso também vai passar”…
A única certeza nesta vida, é que tudo é passageiro. “A única certeza é que nada é certo, tudo está em constante movimento”. Então, o segredo da felicidade é saber surfar as ondas de incerteza. Nenhum mal dura para sempre, nenhuma alegria tão pouco. Saboreie os momentos felizes e aprenda com as dificuldades. Com esta visão da vida, você não perde nunca e estará na felicidade que é o caminho. Namaste!
No próximo encontro falaremos sobre o último Yama, Brahmacharya, um dos mais controversos Yamas que aborda o autocontrole ou a moderação dos sentidos. Até lá 🙂
Créditos:
http://sublimecaminhosublimevirtude.blogspot.com/2008/11/captulo-2.html
http://bhagavata.org/gita/index.html
Muito bom…aprendendo muito!!!
Parabéns pela dedicação! _/\_