Olá!
No último encontro falamos sobre Pratyahara e exploramos algumas das técnicas utilizadas para suprimir o foco nos 5 sentidos e agitação mental, com o objetivo de preparar a mente para nossa jornada interior, que demanda um estado meditativo mais sutil. Uma vez que tiramos o foco dos sentidos, o Sadhana Pada dos Yoga Sutras de Patañjali orienta que devemos buscar concentrar-nos em apenas uma coisa, como técnica para adentrar um estado meditativo adequado. Hoje, investigaremos, portanto, essa ação de buscar uma atenção focada da mente, um foco mental intenso a que Patañjali descreve como Dharana, o 6o. ramo do caminho óctuplo (Ashtanga) do Yoga.
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Dharana (धारणा) tem raiz dhri em sânscrito, que significa segurar, reter, concentrar. A prática de concentração em um único ponto precede a contemplação ou meditação profunda. É fundamental essa introversão, limitando a atividade mental a apenas contemplar um único objeto, e consequente diminuir o ritmo do pensamento objetivo e reflexivo da mente.
Em Dharana buscamos focar proativamente, conscientes do esforço, preparando a mente, e seguindo nosso caminho de fora para dentro, do denso ao sutil, cada vez mais interno, deixando o mundo objetivo e seguindo para o mundo subjetivo, rumo ao encontro com com nossa Luz Interior da Consciência, o jivan atman. Superado este estágio, o yogi flue para Dhyana e finalmente Samadhi, objetivo final do caminho óctuplo do yoga.
Relembrando, os Yoga Sutras de Patañjali se dividem em 4 Padas ou Capítulos:
- Samadhi Pada (sobre Iluminação)
- Sadhana Pada (sobre a Prática)
- Vibhuti Pada (sobre Poderes ou Manifestações)
- Kaivalyam Pada (sobre Libertação)
No aforismo 53 do Sadhana Pada, Patañjali diz:
धारणासु च योग्यता मनसः
dhāraṇāsu ca yogyatā manasaḥ
dhāraṇāsu: concentração; harmonia com pensamentos; harmonia no corpo mental
ca = (conj.) e
yogyatāḥ: fitness; preparação; qualificação; capacidade
manasaḥ = mente
“A concentração, a harmonia dos pensamentos, preparam e capacitam a mente” ou
“E a mente desenvolve a capacidade de harmonia com os pensamentos (dharana)”
Já o 3o. capítulo, o Vibhuti Pada, é dedicado à progressão mais profunda da prática de yoga, com foco no poder da mente de se manifestar. Vibhuti Pada refere-se às capacidades da nossa mente, do nosso Ser, normalmente sub-utilizados, aparentemente super-humanas, conhecidos em sânscrito como siddhis, que podem ser alcançadas através de uma dedicação verdadeira e sincera ao caminho dos oito membros do yoga (Ashtanga).
Vibhuti literalmente significa: ‘abundante’, ‘penetrante’, ‘poderoso’, poderes, que não são sobrenaturais, estão acessíveis a todos, bastando obviamente disciplina intensa para desenvolvê-los. Conforme se expande a consciência do praticante, é natural que se compreenda a existência de uma outra forma, uma forma ampliada, aparentemente anormal, mas na verdade não “normótica”, que sofre de “normose”, como costumava dizia nosso querido Prof Hermógenes.
Samyama é o termo coletivo utilizado para abarcar estes três últimos membros do caminho de oito membros de Patanjali: dharana (concentração), dhyana (meditação) e samadhi (iluminação). Uma vez dominados esses três estágios, diz-se que os siddhis podem ser manifestados pelo praticante. Patañjali adverte enfaticamente que somente faz sentido essa prática com sinceridade e sem benefícios pessoais, sem interesse próprio, do contrário esses poderes tornam-se um grande obstáculo no caminho para Kaivalya ou “libertação final”.
No Vibhuti-Pada, dos Yoga Sutras de Patañjali, aforismo 3.1 está dito:
देशबन्धः चित्तस्य धारणा
deśa-bandhaḥ cittasya dhāraṇā
A harmonia com seus pensamentos e a capacidade de concentração são alcançadas alinhando os aspectos mutáveis da humanidade a um assunto específico.
deśa = lugar; localização; tópico; sujeito
bandha = ligação a; segurando; fixação; unindo
cittasya = (gen.) tudo o que é mutável / transitório na humanidade; consciência
dhāraṇā = concentração; concentrando; direcionando a atenção
Dharana é portanto harmonia com a mente conquistada através de um foco intenso em apenas uma coisa.
No caminho óctuplo, entre asana, pranayama, pratyahara e dharana, o yogi se concentra, alinha e harmoniza sucessivamente os quatro aspectos diferentes da existência humana:
- O Corpo Físico – através de Ásanas
- O Corpo Prânico ou Energético – através de Pranayama
- O Corpo Emocional – através de Pratyahara
- O Corpo Mental – através de Dharana
Esses corpos estão diretamente associados aos nossos centros energéticos, como veremos mais adiante. Mas como sempre temos dito, é muito importante que essa construção se dê nessa ordem, respeitando a ordem do denso ao sutil. B.K.S. Iyengar, por exemplo, em seu livro “Yoga: O caminho para a saúde holística”diz: “Eu ensino Dharana dentro do próprio Ásana. A fundação para Dharana e Dhyana deve começar na prática de Ásana e Pranayama. Assim como um pico de alta voltagem pode danificar um equipamento elétrico, de forma similar, a energia luminosa gerada em dharana e dhyana pode danificar o sistema nervoso de uma pessoa que não tenha praticado ásana e pranayama”.
Alguns autores comparam o yogi, o praticante, a um fazendeiro que cava um sulco no aterro de um campo de arroz para que a água possa fluir e irrigar o campo. Nessa analogia, Dharana pode ser comparado à esta ação final da escavação, quando estando tudo pronto, finalmente se libera a água para que flua para o campo de arroz. Obviamente que não desejamos liberar a água antes do tempo. Dai tudo ter uma ordem, uma sequência e um motivo.
No Capítulo 6 da Bhavagad Gita, Cap 6.24-6.25, Shree Krishna explica a Arjuna sobre a restrição dos sentidos, Pratyahara, que vimos em detalhe no nosso último encontro, preâmbulo para Dharana:
सङ्कल्पप्रभवान्कामांस्त्यक्त्वा सर्वानशेषत:
मनसैवेन्द्रियग्रामं विनियम्य समन्तत:
शनै: शनैरुपरमेद्बुद्ध्या धृतिगृहीतया
आत्मसंस्थं मन: कृत्वा न किञ्चिदपि चिन्तयेत्
saṅkalpa-prabhavān kāmāns tyaktvā sarvān aśheṣhataḥ
manasaivendriya-grāmaṁ viniyamya samantataḥ
śhanaiḥ śhanair uparamed buddhyā dhṛiti-gṛihītayā
ātma-sansthaṁ manaḥ kṛitvā na kiñchid api chintayet
Renunciando completamente a todos os desejos decorrentes dos pensamentos do mundo, deve-se restringir os sentidos de todos os lados com a mente. Lenta e firmemente, com convicção no intelecto, a mente se fixará somente em Deus e não pensará em mais nada.
Para em seguida no verso 6.26 explicar Dharana:
यतो यतो निश्चरति मनश्चञ्चलमस्थिरम्
ततस्ततो नियम्यैतदात्मन्येव वशं नयेत्
yato yato niśhcharati manaśh chañchalam asthiram
tatas tato niyamyaitad ātmanyeva vaśhaṁ nayet
“Onde quer que a mente divague, devido à sua natureza instável, é preciso retirá-la e trazê-la de volta ao controle do Self”.
Estas são as instruções “operacionais” de como executar Dharana. Toda vez que durante seu processo de foco, ocorre uma distração, deve-se imediatamente voltar ao objeto de concentração onde quem dirige é o Self e não a mente desgovernada.
BKS Yengar, por exemplo, sugere fixar a atenção em alguma parte do corpo por longos períodos de tempo, como focar no joelho em Salamba Sirsana. Nesta posição, o aluno verdadeiramente não consegue olhar fisicamente para o seu joelho. Assim, eles precisam “ver” seus joelhos com seus olhos microscópicos (olhos de dharmendriya, fonte da consciência que reside no coração). Isto permite à consciência espalhar-se para áreas remotas, corrigindo diferentes disparidades, e aumentando a extensão dos olhos microscópicos
O sucesso em Samyama, através da meditação não é alcançado de uma hora para outra. É necessário um trabalho intenso, o caminho para a perfeição é longo e árduo. Quando nos sentamos para meditar com a determinação de focar nossa mente no Self, em Deus, descobrimos que, com freqüência ela se desvia no mundo entre sankalpa e vikalpa. Sankalpa significa uma intenção formada pelo coração e pela mente – um voto solene, determinação ou vontade. Em termos práticos, um Sankalpa significa uma determinação unidirecional de focar psicologicamente e filosoficamente em um objetivo específico. Já Vikalpa significa dúvida, indecisão, nossa mente, nosso ego, colocando em cheque nossas decisões e intenções de alma. No conhecido popular do ocidente, anjinhos e diabinhos que nos perturbam a todo momento em posso/não posso, devo/não devo, enfim nossa mente agitada entre pensamentos dharmicos e adharmicos. Dharma é o nosso propósito Maior, de Alma, do Eu Sou. Já adharma são nossas atitudes voltadas ao ego, os desejos, do mundo material, dos cinco sentidos. E ao desviarmos nossa atenção e foco para eles, sem querer, desconstruímos, como um castelo de areia, tudo aquilo que construímos no nosso caminho de concentração e foco, rumo ao Self.
O objetivo do caminho óctuplo do yoga é evitar que essas distrações aconteçam, para que assim, focados, possamos acessar nossa Luz Interior da Consciência, o fundo do lago.
Meditar é portanto, um contínuo construir, derrubar, reconstruir do nosso caminho de interiorização. Um contínuo focar, perder o foco, se dar conta da perda do foco, e focar novamente. Um treino mental intenso, preparando a mente para aquilo que Realmente importa. Para nosso encontro com o Self, com o Eu Sou o que Sou.
Pois bem, tendo encontrado uma forma de estabilizar nossa mente com um foco único, assim como na plantação de arroz, deixamos o terreno pronto para a água fluir e nutrir o solo e irrigar as sementes. Assim, no próximo encontro iremos ousar investigar o que acontece em Dhyana, quando entramos no estado meditativo. Muito foco e concentração até lá!
Nos vemos em breve! 🙂